Arrumo o meu cabelo e ele ajeita a camiseta. Existe alguma coisa entre nós: uma vontade mútua de não sermos cinzas. Van Gogh nos borrou de verde-água, e agora nós dois nos reconhecemos, apesar da multidão. Eu, a moça que sai da faculdade, e ele, o moço que entrega panfletos do dentista. É claro que eu sou muito mais do que uma moça que sai da faculdade e ele é muito mais do que um moço que entrega panfletos na rua. Mas tudo o que sei sobre ele é que uma obturação custa menos de dez reais e tudo o que ele sabe de mim é que meu sorriso é amplo e gratuito. Assim, a nossa relação gira em torno de dentes: fortes e insuperáveis. A multidão me atropela, assim como atropela e pisoteia os seus panfletos, mas eu paro por nove segundos, como se apanhasse a última edição do jornal, leio as suas manchetes odontológicas, sorrio ao meu amigo e digo... muito obrigada! A multidão o atropela, assim como atropela e pisoteia os meus amuletos, mas ele para por nove segundos, como se me entregasse os mais belos poemas camuflados, sorri e me diz... boa noite! E eu vou embora, com o nosso segredo guardado no bolso. Ali está meu cavaleiro andante e sua armadura de plástico, colorida, com os preços estampados.
P.S: o texto tem no mínimo 5 anos, certas poesias nunca mudam.
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